A cena tornou-se comum nos últimos anos — com algumas variações de roteiro. Às vezes, o bloqueio é feito pela Guarda Costeira, com embarcações tão grandes que parecem até navios de guerra; em outros momentos, a missão fica a cargo de pequenos barquinhos, que navegam de maneira coordenada para dificultar a mobilidade numa área ou mesmo formar um paredão no meio do mar. As manobras podem incluir ainda colisões, cruzamentos imprudentes ou mesmo o uso de canhões d’água e lasers ofuscantes.
No fim, o objetivo é o mesmo: impedir que embarcações estrangeiras (e consideradas inimigas por Pequim) se aproximem de regiões disputadas no Mar do Sul da China.
Foi o que aconteceu em meados de maio, quando supostos pesqueiros chineses começaram a se aglomerar em torno do banco de areia Scarborough, formado por um pitoresco conjunto de recifes triangular localizado na Zona Econômica Exclusiva (ZEE) das Filipinas, mas confiscado por Pequim em 2012. Segundo relatos, muitas dessas embarcações já estavam à deriva na região bem antes de começarem a agir. Porém, não foram até lá para pescar.
Parte de uma misteriosa milícia marítima (também conhecida como “milícia pesqueira”) que especialistas dizem ser financiada pelo governo chinês há décadas, sua função era bloquear uma flotilha filipina que pretendia entregar suprimentos aos pescadores na área em disputa — mas sem disparar nenhum tiro, nem fornecer caráter militar oficial à operação. Ao avistarem os "pesqueiros", as embarcações filipinas deram meia volta, desistindo de chegar ao seu destino. Estava cumprida a missão.
'Zona cinzenta'
Pequim tem três grandes forças navais: a Marinha de guerra, fortemente aprimorada sob o governo de Xi Jinping; a Guarda Costeira, criada em 2013 a partir da junção de várias forças dispersas e com um perfil militarizado acima da média de outros países; e as milícias marítimas, que são uma peculiaridade da China e do Vietnã, explica Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da Uerj e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil.
No caso da China, essas milícias remontam à Revolução Chinesa de 1949. Quando os comunistas tomaram o poder, eles não tinham efetivamente uma marinha oceânica, apenas uma força naval fluvial, mas precisavam lidar com Taiwan e as forças nacionalistas da guerra civil. Então, o novo governo decidiu "aplicar ao poder naval uma lógica de guerra de guerrilhas que eles já tinham usado em terra", diz Santoro.
— Essa milícia foi criada como uma espécie de força guerrilheira paramilitar aplicada às questões navais, formada por pescadores, estivadores e trabalhadores do mar em geral, que ocasionalmente eram chamados a exercer também atividades de vigilância e segurança — acrescenta.
Na última década, a Marinha de guerra chinesa se tornou a maior do mundo e, na opinião de analistas, a segunda mais forte, atrás apenas dos Estados Unidos. No entanto, Pequim ainda mantém suas milícias marítimas porque "constituem um instrumento importante de política externa numa espécie de zona cinzenta, que não é de paz nem de guerra", com o objetivo de estabelecer um controle de fato sobre as águas disputadas pela China, segundo Santoro.
— [Essas milícias são] um ator pouco transparente no Mar do Sul da China, mas que tem ganhado cada vez mais visibilidade — afirma Letícia Simões, professora de Relações Internacionais no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF. — Os EUA afirmam que é uma força menor ligada à Guarda Costeira chinesa e ao Exército de Libertação Popular, mas oficialmente a China não reconhece essas milícias marítimas.
Embora não naveguem sob a bandeira militar chinesa, a atuação coordenada dessas milícias se tornou inquestionável nos últimos anos, graças à farta documentação em foto e vídeo de suas atividades disponibilizadas por países como as Filipinas.
— É uma estrutura organizada, hierarquizada e que está inserida no arcabouço do Comitê Central Militar, o Ministério da Defesa chinês — detalha o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em Ciências Militares. — Mas por serem formadas basicamente por civis, essas milícias não usam farda, nem são identificadas, ao contrário da Marinha e da Guarda Costeira, o que facilita para o governo se desvincular de suas atividades, alegando tratar-se apenas de pescadores. Eles atuam numa zona cinzenta.
De acordo com Zachary Fillingham, especialista em China e diretor do site Geopolitical Monitor, as operações realizadas por essas milícias incluem fornecer escolta armada para embarcações pesqueiras chinesas, intimidar embarcações comerciais de outras nações em águas disputadas e dissuadir guardas costeiras e marinhas de outros países reclamantes de policiar suas próprias águas por medo de uma possível escalada com Pequim.
Posto avançado
O episódio mais recente aconteceu na semana passada, quando um navio filipino e uma embarcação da Guarda Costeira chinesa colidiram durante uma missão de reabastecimento. O acidente ocorreu no momento em que o barco das Filipinas se dirigia para a região do banco de areia conhecido como Second Thomas, nas Ilhas Spratly, onde está localizado o BRP Sierra Madre, um navio de guerra americano transferido para as Filipinas em 1976 e que foi deliberadamente encalhado no local em 1999 depois que a China ocupou, quatro anos antes, o vizinho recife Mischief (ou Panganiban, como é chamado por Pequim), a apenas 30 km de distância.
O barco filipino estava navegando para a região do "naufrágio", localizada na ZEE filipina, mas teve sua passagem bloqueada por uma embarcação chinesa de maior porte — uma conhecida manobra do manual de táticas de intimidação naval da China, segundo levantamentos do SeaLight, um projeto de transparência marítima da Universidade Stanford, nos EUA.
A China frequentemente impede a entrada de navios filipinos na área do Second Thomas — até pouco tempo atrás, a exceção eram pequenos barcos de madeira que transportavam alimentos para os fuzileiros estacionados no Sierra Madre e tropas de substituição. Sua estratégia é evitar que o enferrujado posto avançado filipino seja reparado ou substituído até que se desintegre ou se torne inabitável, deixando o banco de areia desocupado.
Pequim alega que mais de 90% de todo o Mar do Sul da China são seus, uma área maior que a do Mediterrâneo e que inclui grupos de ilhas, bancos de areia e águas também reivindicadas por partes vizinhas, incluindo Brunei, Malásia, Filipinas, Vietnã e Taiwan. O país usa a Linha das Nove Raias para definir suas reivindicações marítimas na região, cujo traçado diz ser baseado em atividades históricas que datam de séculos atrás, apesar de um tribunal da ONU ter concluído que isto não tem base legal.
O Mar do Sul da China é hoje o principal ponto de passagem das rotas de comércio marítimo internacional, além de ser muito relevante do ponto de vista militar e dos recursos naturais. Mais da metade da frota mercante mundial e da produção global de gás natural liquefeito, bem como quase um terço do petróleo não refinado do mundo passam pelas águas do Mar do Sul da China. Seu potencial energético estimado varia de 5,4 trilhões de metros cúbicos e 11 bilhões de barris, de acordo com a Agência de Informação Energética dos EUA, a 14 trilhões de metros cúbicos de gás natural e 125 bilhões de barris de petróleo, segundo a Companhia Nacional de Petróleo Offshore da China.