Em um jogo de futebol, quando o juiz marca um pênalti ou impedimento duvidoso, pode-se chamar o VAR. No caso de possíveis condutas anticompetitivas praticadas unilateralmente por uma empresa, a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) autua como um juiz. Em casos mais complexos, em que há indicação para condenação, o Tribunal do Cade, composto por sete conselheiros, é convocado para uma análise minuciosa da conduta investigada. Caso conclua que os efeitos prejudiciais dessa prática superam seus benefícios, as sanções previstas pela legislação antitruste brasileira serão aplicadas à empresa. Caso contrário, o jogo segue.
A taxa do serviço de segregação e entrega, conhecida como SSE, cobrada na movimentação de contêineres no setor portuário, tem sido alvo de várias investigações pelo Cade e de múltiplas decisões judiciais ao longo de aproximadamente 20 anos.
Apesar dos consecutivos registros de crescimento nas movimentações portuárias — com os portos públicos e privados tendo movimentado 1,3 bilhão de toneladas em todo o país em 2023, um aumento de 6,9% em relação a 2022, segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq)[1], e uma projeção de movimentação de 1,4 bilhão de toneladas até 2027 —, essas cifras positivas por vezes ocultam discussões nos tribunais que trazem insegurança para o setor.
Especificamente nos terminais que operam contêineres, que movimentam o equivalente a 10% do volume em peso das cargas movimentadas no país, e constituíram o terceiro tipo de carga mais movimentado no país em 2023, a legalidade da cobrança pelo serviço de segregação e entrega continua em debate.
A longa disputa sobre os potenciais efeitos anticompetitivos da SSE sugere que, assim como em uma partida de futebol, para garantir um ambiente competitivo, é essencial que o árbitro se atenha aos fatos, assegurando um campo de jogo nivelado e emitindo decisões consistentes durante a partida, para que os espectadores possam desfrutar de uma partida justa e vibrante.
No entanto, no setor portuário, as decisões inconsistentes relacionadas à cobrança do SSE ilustram uma realidade oposta. Pouca ou nenhuma importância tem sido dada às evidências empíricas, e as decisões divergentes têm gerado insegurança jurídica. Esse cenário desencoraja investimentos, prejudicando não apenas o setor, mas também os consumidores finais.
Vamos aos fatos! Inicialmente, é importante descrever um pouco mais como a cobrança do SSE ocorre. Os terminais de contêineres executam a carga e descarga de navios, cobrando dos armadores por essa cesta de serviços, que contempla movimentos verticais e horizontais de contêineres até a sua colocação na pilha, no caso da importação, um preço que a indústria denomina “box rate".
O armador, por sua vez, se ressarce junto aos exportadores e importadores dos valores pagos a título de box rate, por meio da Taxa de Movimentação no Terminal (THC em inglês), que compõe, junto com o frete e outras cobranças, o preço do contrato de transporte marítimo.
Após a colocação do contêiner na pilha, no pátio do terminal portuário, a carga pode ser armazenada dentro do próprio terminal de contêineres, que presta o serviço de armazenagem alfandegada até a entrega ao importador. Com a criação de terminais retroportuários ou retro-alfandegados (TRAs) – também conhecidos como “portos secos” –, autorizados pela Receita Federal para atuarem como terminais alfandegados e fora do perímetro dos “portos molhados”, surgiu também a necessidade da cobrança do SSE.
Esses terminais retroportuários alfandegados foram estabelecidos na década de 1980 para aliviar o congestionamento nos “portos molhados” administrados e operados de maneira ineficiente por empresas estatais, e armazenar mercadorias até o desembaraço aduaneiro, competindo diretamente com os terminais portuários no armazenamento de cargas.
A taxa SSE é justificada pelos custos adicionais que os terminais de contêineres incorrem pela segregação e entrega de cargas destinadas a essas instalações alfandegárias externas. De acordo com a Antaq, essa taxa é resultado da exigência da legislação aduaneira de que o terminal portuário disponibilize os contêineres para que sejam transferidos para os terminais retroalfandegados dentro de 48 horas úteis após desembarcados do navio, implicando um serviço adicional extremamente complexo e mais oneroso. Portanto, é essencial enfatizar que os procedimentos logísticos, oferecidos de forma preferencial por determinação legal, fundamentam a necessidade da cobrança do SSE.
Basicamente, a alegada conduta anticompetitiva ocorreria porque os operadores portuários poderiam cobrar uma taxa SSE tão elevada que tornasse economicamente inviável o negócio de armazenagem dos “portos secos”. A racionalidade dessa conduta estaria na intenção dos operadores portuários (“portos molhados”) de eliminar os concorrentes que fazem a armazenagem de contêineres (TRAs).
Portanto, o cerne da análise antitruste não deveria residir na existência da taxa em si (regra per se), mas no montante da taxa que é cobrado (regra da razão), que poderia inviabilizar os negócios dos “portos secos”. Ao eliminar esses competidores, os operadores portuários poderiam ter menos pressão competitiva, criando um ambiente propício para elevação dos preços de armazenagem.
Essa elevação de preço, por sua vez, seria repassada aos importadores e, eventualmente, ao consumidor final. Essa situação delineia o potencial efeito anticompetitivo associado à cobrança excessiva da taxa SSE.
Entretanto, a presença da possibilidade de conduta abusiva anticoncorrencial não é condição suficiente para uma condenação – em uma conduta que existe há cerca de 20 anos – cabendo à autoridade concorrencial demonstrar a existência da conduta e seus efeitos líquidos negativos para a concorrência.
No presente caso, quando se observa um longo período de cobrança do SSE é perfeitamente possível olhar para dados históricos desse mercado e verificar o que de fato tem acontecido com o valor da taxa de SSE e seus reflexos sobre os lucros ou prejuízos dos competidores e, em última medida, se está ocorrendo entrada ou saída de “portos secos” do mercado.
Para analisar esses efeitos, o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do Cade realizou um amplo estudo temático sobre a cobrança do SSE por terminais portuários no mercado de armazenagem alfandegada[2]. O DEE concluiu que não há motivos para considerar a cobrança da SSE como um ilícito per se, sendo necessária uma análise de efeitos líquidos dessa cobrança.
Ao analisar os efeitos da conduta, o DEE enviou questionários para os agentes desse mercado, incluindo “portos secos” e “molhados”. Interessante observar que os “portos secos”, que se mostraram contrários à cobrança, não forneceram dados concretos sobre preços, custos e lucros, nem desenvolveram uma teoria, modelo ou simulação que sustentasse uma tese exclusionária.
Não foi possível constatar a exclusão de terminais retro-alfandegados (TRAs), apesar de a cobrança ser praticada há um longo tempo. Pelo contrário, em Itajaí, o estudo do DEE/Cade revelou que, mesmo com a cobrança da taxa SSE, ocorreu a entrada de sete novos TRAs na região nos últimos anos. Além disso, verificou-se que o SSE representa uma parte muito pequena dos custos totais do serviço de armazenagem portuária, o que reforça a improbabilidade de que essa prática venha a excluir algum competidor do mercado.
Ao defender a extinção do SSE, os TRAs propõem implicitamente que os custos dos serviços que utilizam sejam absorvidos pelos outros clientes, os quais escolhem retirar a carga diretamente do terminal portuário. Isso gera um sistema de subsídios cruzados que produz ineficiências econômicas. Além disso, proibir a cobrança de serviços quando há custos envolvidos pode resultar na redução de investimentos no setor, visto que tal medida causa desincentivo aos investimentos para expansão e manutenção dos terminais portuários.
Soma-se a isso, a maior necessidade de investimento dos “portos molhados” em infraestrutura robusta. Eles precisam de instalações adequadas para a armazenagem, mesmo que temporária, de todos os contêineres embarcados e descarregados dos navios. Essa necessidade estende-se à estrutura e aos equipamentos necessários para a atracação, carga e descarga dos navios, assim como aos equipamentos de pátio, que são essenciais para a segregação e entrega eficiente dos contêineres no tempo demandado.
Por fim, o estudo do DEE/Cade também enfatiza que o fato de as supostas vítimas de predação (TRAs) via SSE apresentarem lucros maiores que o próprio incumbente verticalizado ("porto molhado") é um aspecto crucial que deve ser considerado pela autoridade concorrencial na análise deste tipo de conduta. Ignorar os fatos pode levar a decisões baseadas exclusivamente em efeitos potenciais e teorias que não refletem a realidade, prejudicando assim uma resolução adequada da questão. Essa falta de contato com a realidade pode ser resumida na frase do professor Fernando Araújo: "a realidade é um detalhe que atrapalha o raciocínio".
É necessário o fomento ao setor portuário e de transporte aquaviário que tem papel fundamental no comércio exterior do Brasil e no seu desenvolvimento econômico. O setor é responsável pelo fluxo de mais de 98% das exportações brasileiras e mais de 92% das importações em termos de volume.
Especificamente em relação ao comércio via contêineres, a OCDE[3] mostra uma correlação positiva entre o comércio conteinerizado e o crescimento do PIB. O aumento no número de TEUs transportados – unidade equivalente a um contêiner de 20 pés – impulsiona o fluxo de comércio entre países, contribuindo significativamente para o crescimento real do PIB.
A longa controvérsia sobre os possíveis efeitos anticompetitivos do SSE ilustra como decisões divergentes no setor portuário têm gerado insegurança jurídica. Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que a Antaq anulasse todos os dispositivos da Resolução 72/2022 relacionados à cobrança do SSE. Incertezas, em alguma medida, desencorajam investimentos, prejudicando toda sociedade.
A chave para tomar decisões coerentes e eficazes é a análise cuidadosa dos fatos. Se as evidências apresentadas fossem plenamente consideradas nas decisões administrativas e judiciais, seria possível alcançar maior estabilidade nas decisões sobre o tema. Se não existe evidência de falta, o juiz deveria dizer “segue o jogo”.
[1]Veja a apresentação do Desempenho Aquaviário 2023, disponível em:https://www.gov.br/antaq/pt-br/noticias/2024/copy_of_Anurio2023.pdf(acesso em 17/06/2024).
[2]Nota técnica n° 29/2022/DEE/CADE disponível em:https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/advocacy/QIP-2022/SEI_CADE%20-%201129241%20-%20Nota%20T%C3%A9cnica%2029%20-%20ANEXO%20-%2008700003929-2019-23.pdf(acesso em 13/06/2024).
[3]OCDE (2022), Relatórios de Avaliação Concorrencial da OCDE: Brasil, OECD Publishing, Paris,https://doi.org/10.1787/283dc7c1-pt(acesso em 13/06/2024).