A aprovação de um anteprojeto de lei, nesta quarta-feira (23), por uma comissão de especialistas formada pela presidência da Câmara dos Deputados para mudar a Lei de Portos deu o tom do que deverá ser a análise por parte dos parlamentares da proposta.
Assim como nas outras duas mudanças legislativas (1993 e 2013), com conflitos, discussões, protestos e acusações por parte dos trabalhadores de lobby dos empresários em benefício próprio, foi aprovada uma proposta que traz profundas modificações no setor.
A comissão entregou o trabalho final para a presidência da Câmara dos Deputados, que agora vai iniciar a tramitação da proposta pela casa. Caso aprovada, ela também terá que ser avaliada pelo Senado e ser sancionada pela Presidência da República. Assista à transmissão da reunião desta quarta-feira neste link.
“O anteprojeto que entregamos não é apenas o melhor. É o farol que iluminará o caminho para um setor portuário mais forte, mais justo e mais competitivo. É a prova viva de que é possível conciliar eficiência econômica com justiça social, produtividade com dignidade humana”, disse o relator da comissão, desembargador Celso Peel, em seu discurso pouco antes da chuva de protestos e reclamações dos trabalhadores portuários, que lotaram a sala onde a comissão votou o relatório final.
Principais mudanças
A Agência iNFRA teve acesso à nova redação da comissão, após uma proposta inicial que foi vazada no início do mês como forma de avaliar divergências. No entanto, ela não é a versão final, que sofreu modificações no processo de votação da própria comissão nesta quarta-feira, especialmente na parte que toca ao trabalho portuário.
Nessa versão mais próxima da final, a comissão amenizou a perda de atribuições do ministério em relação à ideia inicial, colocando por exemplo que é ele que vai ser o concedente de portos públicos, o que não estava previsto na primeira versão. Mas foi mantida a vedação à concessão de portos estratégicos.
A proposta introduz uma figura chamada janela única aquaviária, que também seria gerida pelo ministério. Mas os poderes da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) foram ainda mais ampliados que na primeira versão, inclusive o de “arrecadar, administrar e aplicar” as suas próprias receitas. Foi introduzida a figura da Câmara de Solução Consensual, que ficará a cargo da agência.
Mas os poderes da ANTAQ para fiscalização sofreram uma restrição. A proposta veda que os terminais portuários tenham que informar seus preços e receitas periodicamente à agência, permitindo apenas em casos de apuração de abusos.
Mas, entre diretrizes da lei, foi retomada a que prevê que a exploração dos portos terá como diretriz a “garantia da modicidade de preços praticados no setor, da qualidade da atividade prestada e da efetividade dos direitos dos usuários”, o que não constava na versão original, que previa “liberdade de preços nos serviços portuários, vedada qualquer prática prejudicial à concorrência e o abuso de poder econômico”, o que também foi mantido.
70 anos para todos
As autoridades portuárias mantiveram a grande parte das atribuições que estavam previstas na proposta original, ampliando o que é permitido hoje, num movimento oposto ao da centralização da lei de 2013. Foi criada uma obrigatoriedade de que todos os portos públicos tenham o chamado cais público, área onde operadores não ligados a terminais podem fazer movimentação de carga.
Os modelos de contratação permitidos às autoridades portuárias sofreram alteração em relação à proposta original da comissão, deixando-os mais próximos dos modelos que estão previstos na Lei das Estatais e na Nova Lei de Licitações. Os CAPs (Conselhos de Autoridade Portuária) seguiram consultivos.
Também foi mantida a permissão para que todos os contratos de arrendamento, inclusive os sem permissão expressa e com tempo determinado, possam ser prorrogados até 70 anos, a critério da autoridade portuária, que terá que justificar se não fizer a prorrogação.
A hipótese de investimento por conta e risco dos arrendatários sem reversão de bens e aprovação prévia da autoridade portuária seguiu no anteprojeto aprovado. Os contratos de uso temporário e de transição, que hoje têm limitações de seis meses por determinações de órgãos de controle, poderão ser assinados por até 48 meses. A proposta também tenta simplificar o modelo de autorização de portos privados e cria regras para as dragagens.
Conflito com os trabalhadores
As mudanças nas formas de contratação e organização da mão de obra é que seguem sendo as mais profundas e foram o motivo para que a reunião de aprovação da proposta fosse realizada em clima tenso, com protestos de várias categorias de trabalhadores, inclusive com ameaça de expulsão de pessoas do plenário por parte do presidente da comissão, o desembargador Douglas Alencar Rodrigues.
Os representantes dos trabalhadores reclamavam que não foram de fato escutados pela comissão e que ela estava desequilibrada em favor do lado patronal. Ironizaram especialmente a CEO do Instituto Praticagem do Brasil, Jaqueline Wendpap, que fez parte da comissão e defendeu mais fortemente as mudanças nas regras do trabalho portuário.
Entre as mudanças, está a permissão para que os trabalhadores deixem de ser contratados com exclusividade pelos terminais portuários, criando um modelo de empresa privada para fornecer mão de obra, o que para os trabalhadores vai permitir a terceirização de mão de obra no setor.
“Por que não pode terceirizar a praticagem?”, gritavam os trabalhadores, em referência ao projeto que recentemente foi aprovado no Congresso mantendo o monopólio existente para a contratação de práticos, que são os responsáveis por manobrar os navios.
Já o presidente da Fenop (Federação Nacional dos Operadores Portuários), Sérgio Aquino, que não fez parte da comissão, foi ameaçado em vários momentos por trabalhadores de diferentes categorias que estavam presentes na sala, atribuindo a ele as propostas de mudança no trabalho portuário.
Relator: democratização do trabalho
As tentativas da proposta modificada em relação à primeira versão de reduzir as alterações no modelo de contratação dos trabalhadores portuários avulsos e em sua organização nem de longe agradaram aos representantes que estavam presentes à votação.
O desembargador Celso Peel, relator da comissão, defendeu que a proposta visava a valorização do trabalho portuário, democratizando as oportunidades de acesso ao emprego no setor, por meio de um modelo de qualificação prévia dos trabalhadores avulsos.
“A implantação de um sistema que garante exclusividade aos trabalhadores qualificados e certificados traz múltiplos benefícios”, disse o relator da proposta que falou sobre a necessidade de modernização do trabalho no setor.
Advogado diz que haverá ampliação dos conflitos
Mas os dois integrantes da comissão mais ligados aos temas sindicais, a procuradora do Trabalho Flávia Bauler e o advogado Eraldo Aurélio Rodrigues Franzese votaram contra as propostas de mudança na comissão e pediram votações em separado de vários itens, nas quais em quase todas foram derrotados.
Franzese disse que imaginava que a comissão tinha sido criada para resolver os conflitos laborais de anos do setor, mas que o que está sendo aprovado vai em direção oposta. “Minha visão é de frustração. Pensei que sairia a solução de conflito. A proposta não resolveu os conflitos e me parece que vamos ter outros conflitos sociais pela frente”, disse o advogado.
A procuradora do trabalho também reclamou da forma com o anteprojeto foi apresentado e discutido, dizendo que os trabalhadores não tiveram acesso à versão final para que pudessem avaliar e discutir as profundas mudanças que foram propostas em seu trabalho.
Mais greves e cobrança de posição do governo
É a mesma visão de José Adilson Pereira, que preside a Federação Nacional dos Portuários e está numa comissão criada pelo Ministério de Portos e Aeroportos para tratar dos temas referentes ao trabalho no setor. Segundo ele, a comissão não respeitou o “diálogo social”.
“Diálogo social permite a negociação entre as partes para se chegar a uma solução. Ouvir você falar numa reunião não é diálogo”, disse Adilson. “A proposta destrói os trabalhadores portuários. É o maior retrocesso da história e mostra um lobby perfeito do setor patronal.”
Adilson afirmou que a partir de agora os trabalhadores começam um movimento para ampliar as greves nos portos com o intuito de barrar o seguimento da proposta. E pretende cobrar uma posição do governo federal sobre se apoia ou não a proposta apresentada.
“Nossa primeira ação é saber a posição do governo federal, que tem se posicionado com reticência em relação ao trabalho da comissão por não ter feito parte do debate. A posição do governo é não mexer na lei portuária e retirar direito dos trabalhadores”, disse o representante dos trabalhadores.
Deputado quer impedir urgência
Único parlamentar a falar no encontro, o deputado federal Alexandre Lindenmeyer (PT-RS), ex-prefeito de Rio Grande, cidade onde está o maior porto do estado, afirmou que vai trabalhar para que o projeto faça toda a tramitação legislativa normal pelas comissões e não seja votado em regime de urgência no plenário. Segundo ele, o tema é complexo e não se pode usar o argumento de que foi feito por uma comissão de especialistas.
“Se a gente olhasse os nomes da comissão, a gente já sabia o resultado, que era fazer mudanças rigorosas tirando direitos dos trabalhadores”, disse o deputado.
A proposta inicial, que ainda deverá sofrer alterações antes da versão final, propõe que seja criada essa categoria de portos no país e cria vedação expressa ao processo de concessão das unidades que receberem essa classificação, que será de responsabilidade da União.