As faixas costeiras são as que têm maior concentração populacional, e as cidades portuárias, mais especificamente, são fundamentais para a economia dos países. Por esses dois fatores, entre outros, os efeitos da mudança do clima precisam ser avaliados com especial atenção nessas cidades.
Essa análise não pode ser superficial, em dois sentidos: precisa ser minuciosa, técnica, e não se ater apenas à topografia dos terrenos e geomorfologia de territórios. No caso de áreas urbanizadas, é fundamental considerar o sistema de drenagem ao nível micro (captação, ramais e coletores) e macro (galerias e canais, entre outros dispositivos).
O aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, sobretudo vendavais e ressacas, têm afetado áreas costeiras e operações portuárias, sobretudo de granéis sólidos, o que impacta diretamente o agronegócio, “carro-chefe” das exportações nacionais. A mudança do clima também envolve a tendência de elevação do nível do mar, o que tem gerado matérias bombásticas na mídia e “papers” a granel, raramente sugerindo soluções de enfrentamento, as quais normalmente desconsideram fatores socioeconômicos.
É uma somatória de problemas preocupantes, mas não necessariamente novos.
Os Países Baixos, por exemplo, lidam com problemas relativos ao nível do mar desde o século 13, com seus moinhos de vento concebidos como bombas d’água, além de outros usos. Hoje, esse sistema é bem mais complexo, até grandioso, e o Porto de Rotterdam é o principal da Europa, inclusive avançando mar adentro, com obras em solo criado (aterros).
A função da Engenharia é adaptar o meio ambiente às necessidades humanas, mas é fundamental que todas as variáveis sejam consideradas, e a topografia do terreno é apenas uma delas.
A drenagem natural ocorre por infiltração no solo, que alimenta o lençol freático, e por escoamento superficial, que deságua em lagos, rios e oceanos.
Em áreas urbanizadas, os espaços verdes (praças, parques etc.) têm papel importante na infiltração. Também existem pavimentos drenantes. Já o escoamento superficial é coletado em sistemas superficiais, subterrâneos e canais, entre outros elementos constitutivos, dimensionados segundo as normas vigentes, que incluem a consideração de cenários de projeto. Há parâmetros para esse dimensionamento que asseguram eficiência em vários cenários, mas não em casos extremos, daqueles que ocorrem uma vez a cada cem anos ou mais.
Por melhor que sejam os projetos, a obra pode ter sua funcionalidade prejudicada por falta de manutenção (limpeza), mau uso (lançamento de lixo e outros materiais em ruas e canais) e danos provocados por outras redes de utilidades (obstruções etc.), ou tráfego de veículos pesados em vias não projetadas para esse fim. Além disso, em áreas litorâneas o solo é particularmente sujeito a recalques (desnivelamentos) que podem prejudicar o escoamento dos efluentes.
A impermeabilização do solo, em função de urbanizações e edificações, e a contribuição de sistemas de rebaixamento de lençol freático de prédios com subsolo, igualmente elevam a demanda de sistemas de drenagem antigos.
Os alagamentos ocorrem pela soma de todos esses “medos”.
No caso de Santos e de outros municípios da Região Metropolitana da Baixada Santista, os alagamentos ocorrem em algumas vias mesmo sem chuvas, basta maré alta, pois o a água do mar reflui pelo sistema de drenagem, seguindo o princípio físico do equilíbrio hidrostático (vasos comunicantes), para quem não faltou nessa aula.
Para evitar esse refluxo, seria necessário adotar válvulas de retenção ou comportas. Porém, no caso de chuvas intensas e prolongadas, a solução tende a ser a utilização de “piscinões” e/ou bombeamento.
Um “piscinão” tem por objetivo armazenar parte dos efluentes, aliviando o sistema de drenagem em situações de maior demanda. Após esse período, eles são esvaziados, com a água sendo bombeada de volta ao sistema.
Já no caso do bombeamento, ele é associado a um sistema de comportas, de maneira a que a água seja bombeada para fora, até que o nível da maré ou do manancial dispense sua utilização. De maneira simplória, ele funciona de forma semelhante ao que ocorre em embarcações: jogar a água para fora mais rápido do que ela entra.
A porção insular das cidades de Santos e São Vicente, também inclui a margem direita do Porto de Santos, ao longo do Canal do Estuário, ambos situados na Ilha de São Vicente que, pela definição clássica, é uma porção de terra cercada de água por todos os lados.
O bom funcionamento do sistema de drenagem é fundamental para as cidades e para o porto, e deve obrigatoriamente ser considerado no âmbito do enfrentamento dos efeitos deletérios da mudança do clima.
O ocorrido nas cidades e portos do Rio Grande do Sul é mais um alerta sobre a necessidade desse enfrentamento racional e objetivo. E lembrar que houve quem sugerisse a remoção de obras feitas há décadas, para melhorar a proteção de Porto Alegre, por questões “estéticas”. Mas há que se reconhecer que elas não desempenharam melhor sua função, por falta de manutenção, um problema crônico em obras públicas.
No caso de Santos, os sistemas drenagem da cidade e do porto são interligados ao longo do Canal do Estuário. Assim, qualquer obra feita no porto, precisa considerar o sistema existente, para que não prejudicá-lo.
Como já comentado, a eficiência desses sistemas depende de projetos bem elaborados e manutenção adequada e frequente, mas não exclui a necessidade de melhorias, que podem incluir obras de expansão de capacidade, daquelas que são caras, incomodam e não têm cerimônia de inauguração, homenageando sei lá quem, que às vezes nada teve a ver com sua finalidade.
Como toda a obra de Engenharia essas obras incomodam, na execução; se não funcionam direito geram críticas; mas se funcionam, ninguém nota. Fazer o quê…
No mais, são obras tão mais custosas, quanto mais complexas. Assim, alguns governantes preferem investir seus orçamentos em obras “visíveis”, só pensando em infraestrutura urbana quando um desastre acontece.
Não está excluída a possibilidade da Ilha de São Vicente precisar de um sistema de bombeamento semelhante ao dos Países Baixos num futuro nem tão distante, e isso vale para outras regiões do país e do mundo, reiterando que as regiões costeiras são particularmente suscetíveis às mudanças do clima, com ênfase nas cidades portuárias, por sua importância econômica dos países. Afinal, cerca de 90% do comércio internacional flui pelos portos do mundo.
Alertas não faltam, apocalípticos, messiânicos, mas e as ações efetivas de enfrentamento?
Uma das medidas necessárias é a atualização do cadastro dos sistemas de drenagem das cidades e portos.
No caso de Santos, já existem ações do Município e da Autoridade Portuária, relativas ao enfrentamento dos efeitos da mudança do clima.
O alteamento da Av. Rei Pelé, na orla da Ponta da Praia, mitigou os efeitos de ressacas (danos à infraestrutura urbana e privada, interdições de tráfego de veículos etc.). A implantação do projeto-piloto de proteção costeira, utilizando “geobags” na mesma região, para enfrentar o processo erosivo na praia. A Prefeitura de Santos também implantando obras de drenagem que incluem sistemas de bombeamento na entrada da cidade e bairros da Zona Noroeste.
A Autoridade Portuária de Santos, por seu lado, possui ações relativas ao monitoramento ambiental, incluindo elaboração de inventários de gases de efeito estufa, além de avançar no processo de implantação de seu VTMIS. Além disso, mediante TAC firmado com o Ministério Público Federal, com anuência da Prefeitura de Santos, se propôs a manter, sinalizar e ampliar obra de proteção costeira com “geobags”, entre outros estudos.
No entanto, também é preciso considerar a porção insular de São Vicente nesse processo. Ao que consta, a cidade dispõe de cadastro apenas da macrodrenagem insular.
Os investimentos necessários extrapolam a capacidade de orçamentárias dos municípios, o que obrigatoriamente demandará aportes financeiros dos governos estadual e federal, diretamente ou por meio de PPPs.
Justificativas para esse aporte?
Bem, só que o Porto de Santos responde por 30% da corrente comercial do Brasil!
Esse entendimento também vale para todas as cidades portuárias brasileiras, pois, no âmbito geral, os portos brasileiros movimentam 95% da balança comercial do País!
Pela extensão de nossa costa cidades turísticas ou não, também precisam ser consideradas, resultando em medidas que podem variar em recuperação da morfologia original de suas orlas, com a retirada de ocupações antrópicas; medidas adaptativas, e/ou obras artificiais de proteção costeira.
A atualização dos cadastros de drenagem das cidades e do porto é o primeiro passo, mas não o menos importante, pois será a partir do correto e completo levantamento de dados superficiais, seções de escoamento, declividades etc, devidamente digitalizados, que estudos objetivos poderão ser elaborados. Sem isso, estaremos do campo do empirismo ou, pior, do “achismo”, do tipo de joga o dinheiro público pelo ralo abaixo.
É importante definir um arcabouço institucional adequado, mas isso não impede nem protela que esses estudos já ocorram. Por quê?
Bem, nas Engenharias em geral, é normal a produção de modelos matemáticos e físicos para a simulação de cenários.
O cadastro mais recente do sistema de drenagem da porção insular de Santos é do início dos anos de 1990. No caso do Porto de Santos, esse cadastro é ainda mais antigo, mas ao menos os canais permanecem com suas configurações histórias, que desde os tempos do Engenheiro Saturnino de Brito os configuram como de “mar a mar”, parte desaguando na orla, parte no Canal do Estuário.
A construção do projeto básico dos canais de Santos foi concluída na década de 1920, e eles se tornaram marcos urbanos da cidade. As expansões posteriores do porto mantiveram sua funcionalidade, a ponto do mais antigos terem sido tombados pelo patrimônio histórico local.
Tombar obras de infraestrutura ativas é algo a ser muito bem pensado, além de prever alguma flexibilização, para evitar radicalismos inconsequentes.
Seja a atualização dos cadastros de drenagem: o que fazer com esses dados?
Já disseram que quem não mede não gere. E para gerir é preciso processar esses dados.
Não é de hoje que existem sistemas digitais que reproduzem cidades. Consta que após a Primeira Guerra do Golfo, a Cidade do Kwait foi reconstruída com base nas informações existentes nesse sistema.
Atualmente, surgir a expressão “gêmeo digital”, que é basicamente a mesma coisa, mas com uma importante evolução: de acordo com a forma com que é concebido, ele permite a elaboração de cenários e simulações de intervenções, avaliando sua eficácia.
Em tese, ele é muito mais efetivo, eliminando, até confrontando, o “achismo” e linhas de pesquisa enviesadas. Pode ser uma ferramenta holística, agregando várias áreas do conhecimento.
Ainda na área das Engenharias, o modelo matemático tende a ser associado a um modelo reduzido físico, um ajudando a calibrar o outro, até que se alinhem.
Em 2015, participei de uma oficina do Projeto Metropole, em que propuseram a dois grupos que elaborassem sugestões de ações para enfrentamento da elevação do nível do mar e ressacas em Santos considerando a orla da praia e as áreas ribeirinhas e estuarinas.
O grupo em que eu participava ficou com orla da praia e propôs a implantação de quebra-mares. O outro sugeriu recuperação de restingas.
As duas propostas foram submetidas aos responsáveis pelo Projeto Metropole, no exterior, sendo que a proposta da orla foi considerada com elevado índice de eficácia, enquanto a outra foi considerada pouco efetiva.
Não que uma solução seja sempre melhor do que outra, pois cada uma tem sua aplicabilidade e eficácia específica, não havendo uma “panaceia”.
Soluções do tipo supressão de áreas antropisadas, retornando à conformação natural podem ser aplicadas em alguns casos, mas não faria o menor sentido, no caso da cidade de Santos, remover a plataforma do Emissário, os jardins da praia ou a Avenida Rei Pelé, ao longo do canal de acesso ao porto.
A Engenharia sempre terá uma ou mais soluções para um determinado problema. O problema é o custo.
No entanto, como um amigo vive a repetir, o custo do não fazer tende a ser muito maior!
A Autoridade Portuária de Santos contratou recentemente a elaboração de um “gêmeo digital” do Porto de Santos, considerado estratégico para a avaliação de cenários operacionais do complexo, incluindo aspectos climáticos.
A cidade e o porto já se utilizando de dados fornecidos pelo Núcleo de Pesquisas Hidrodinâmicas da Universidade Santa Cecília, que permitem prever eventos climáticos extremos com cerca de três dias de antecedência.
Um “gêmeo digital” da Ilha de São Vicente permitirá a integração de todos esses dados, o que vale para outras regiões.
Como afirmei no início, a questão da mudança do clima não pode ser avaliada de forma superficial, literalmente ou tecnicamente. É preciso ter dados atualizados e constantemente alimentados e retroalimentados, para apresentar resultados práticos.
As cidades portuárias, por sua importância estratégica, precisam de atenção especial.
Em termos de recursos financeiros, o PL nº 733/2015, que propõe alterações na legislação portuária, prevê a disponibilização de parte da arrecadação dos portos para cidades portuárias. Tal proposta aglutina outros projetos de lei e de emendas constitucionais que tramitam ou tramitaram no Congresso Nacional. Seria equivalente aos “royalties” de petróleo e gás, águas (energia) e mineração já existentes.
Independentemente da aprovação ou não dessa pauta, os investimentos necessários ao enfrentamento dos efeitos da mudança do clima precisam ser feitos e são urgentes.
Discursos dramáticos servem como alertas, mas não podem ser apenas matéria para manchetes apocalípticas da mídia, ou palco para alarmistas com ou sem doutorado, que apontam problemas, mas pouco colaboram com soluções, ou estão mais preocupados com suas linhas de pesquisa sem pensar no todo do problema.
Em suma, é imprescindível que as instituições, a iniciativa privada, a academia e a sociedade se unam em busca de soluções holísticas, sem extremismos ideológicos, interesses político-partidários ou oportunismos em geral.